De tempos em tempos, vemos em redes sociais algumas discussões musicais relacionadas sobre o material produzido no passado versus o que é lançado atualmente. Existe uma tendência que é sempre comparar um processo em andamento a um processo finalizado. É bastante confortante e simplista quando posta lado a lado alguma obra de compositor já consagrado com trabalhos recentes, chegando ao argumento de que não temos música boa.
Venho aqui nesse texto falar que essas pessoas estão completamente erradas. Grande é a produção audiovisual de nosso tempo, e até de certa forma mais acessível quando comparada com o passado. Um fator importantíssimo é que as sociedades, cultura e ideais eram outros, e nada mais justo que o resultado também se diferir. De forma a ilustrar, a obra de Chico Buarque, por exemplo. Seu último disco traz uma estética bastante diferente do que conhecemos da década de 60. Logicamente, um processo natural, mas não necessariamente fácil.
Não é de todo interessante o lançamento do mesmo disco a cada dois anos. Há quem goste e defenda. São processos diferentes, mas acho riquíssimo estarmos sempre em transformação.
Sobre o termo, adotarei a palavra mais frequentemente. Surgiu de uma conversa com uma querida pessoa, discorrendo e pedindo sugestões sobre quarteto de cordas. Havia usado o termo “desenvolvimento”, para me referir aos quartetos de Haydn ao longo do tempo. Então, me disseram que a palavra transformação seria mais interessante. Pegarei emprestado esse uso, e obrigado pelas conversas e crescimentos musicais!
É sobre essa transformação que o texto se baseia hoje. Acho que não é mais que obrigação pessoal acompanhar os artistas do meio em que me insiro, e trago aqui dois CDs recém-lançados:
Riachinho das Pedras – Duo Aduar (Kuarup)
Latino Nativo – Estêvão Lobo (Cantores Del Mundo)
Por motivos óbvios de não estar morando nas Minas Gerais, infelizmente não tive a versão física de ambos os trabalhos. Entretanto, felizmente pela transformação tecnológica do terceiro milênio, facilmente consigo acesso a ambos os trabalhos sentado na poltrona de casa. Portanto, se está lendo este texto, você também pode acessar pelas redes de streaming.
Ambos os discos foram lançados no último mês. De Duo Aduar, no final de Fevereiro, e Estêvão Lobo, no final de Março. São também moldados pela região das Vertentes, tema que pode render um texto por si só.
Sobre os discos, é instigante e inspiradora a transformação de influências, originalidade e relevância das obras, principalmente na clareza do resultado final.
Ao passo que Estêvão Lobo traz a bandeira da representatividade latina, como o nome do disco evidência, Duo Aduar traz a visão da natureza como mãe-terra e que não só precisa, mas deve ser vista de forma mais sábia. Isso em momento algum distancia os resultados estéticos, mas na verdade os aproxima. Os dois temas são de fundamental importância, e também atuais.
Falando sobre Estêvão Lobo, achei extremamente feliz e interessante a temática. Comentei em ocasiões anteriores a falta de representatividade como latino por parte dos brasileiros. O momento foi pontual. Na maioria das vezes, acreditamos estarmos em uma situação à parte de nossos vizinhos, ao passo que na verdade somos todos irmãos, tendo percorrido um caminho muito específico, diferenciado e rico, comparado com outros locais do mundo. Pessoalmente, nunca me senti tão brasileiro desde que pisei pra fora do país.
Não há nada melhor do que o sentimento brasileiro e latino, compartilhando esse sangue riquíssimo que nos dá uma visão de mundo bem específica, que não se encontra em nenhum outro lugar ao redor do globo. Belchior cantava o homem latino há algumas décadas, e marcou definitivamente a música popular brasileira com essa perspectiva.
Com obras em português e espanhol, o disco de Estêvão é recheado de singularidades do artista, juntamente com as grandes referências não só da música mineira, mas brasileira, com o toque das vertentes. Essa é o caminho de Estêvão Lobo para seu primeiro disco solo.
Os dois trabalhos possuem uma relação bastante interessante. Apesar de terem temas principais um pouco diversos, são transversais entre si, e é de onde tiro minhas ideias sobre o processo metamórfico realizado pelas Vertentes Gerais. Lobo fala sobre a natureza, as perspectivas solitárias e também as relações comuns. Dou destaque para os termos ligados à natureza. Com palavras tão simbólicas como árvore, conectamos com todos os irmãos latinos, e isso inclui o outro trabalho que aqui falo, de Duo Aduar.
Riachinho das Pedras se trata justamente da violência com que o homem vem tratando a mãe natureza. Ao decorrer do disco, essa linha se transfigura em diferentes formas, em diálogos diretos ou histórias. Não gosto de falar ou referir sobre nenhuma obra específica, mas não posso deixar de mencionar fortes canções como Índia Tuíra ou o Silêncio do Rio. A segunda, trata justamente do crime ocorrido em Mariana, na represa de minério, e cuja ilegalidade foi repetida de forma mais trágica ainda posteriormente. Triste lado mineiro, mas real e perigoso. Minas também são Marianas, Brumadinhos e futuros ameaçados pela destruição do homem.
Estêvão Lobo traz em seu disco obras como Piracema e Latino Nativo. Em minha opinião, algumas das principais preciosidades do álbum. O sentimento de união, evocado principalmente pela segunda canção mencionada, é confortante e esperançoso.
Uma curiosidade é que Piracema, também é a palavra que da nome ao primeiro EP lançado por Duo Aduar, com quatro canções presentes no disco Riachinho das Pedras. Algumas joias daqui são Sentinela e Do que depende o perdão?. Esteticamente, são obras que acho que convertem influências principalmente mineiras, com um resultado lindo.
Não acho justo dizer que as canções mencionadas são as melhores, por diferentes motivos. Primeiro que acredito que um álbum deva ser ouvido atentamente por inteiro. Existe um percurso dialético, onde a famigerada e atual playlist acaba por quebrar totalmente. O trabalho exigido em cada obra foi diverso, e por isso não acho justo enumerar superiores. Por fim, a escuta musical também está diretamente ligada ao ouvinte e seu passado, fato esse que também é estimulante. Cada escuta, é uma nova escuta. Ao enviar o disco de Estêvão Lobo, por exemplo, para outra querida pessoa, a mesma trouxe à tona um discurso da música popular ligada ao choro. Isso é extremamente interessante e rico. É transformação.
Ambos os trabalhos são de alto nível e um deleite aos ouvidos. Fico mais feliz ainda ao saber que são discos de lançamento, o que mostra que muito mais excelente material está por vir. A música está sendo feito em alta qualidade, aqui é agora. Além dos dois citados nesse texto, temos lançamentos de Cifras no Varal (2019), Laura Candida (2019), Sonisférico (em produção) e Tiago Trotta (2019), todos na região do campo das vertentes ou próximo.
Consigo ouvir, no(s) álbum(ns), a homenagem e respeito devido aos grandes mestres e influências, transformado pela sociedade atual, e estética dos anos 2020, e principalmente com os ideais sonoros próprios, altamente refinados e pontuais.
Minas Gerais é terra vasta. É sertão, cidade grande, interior, café com sorriso simples, boi, vaca, Mata Atlântica e serrado, uma serra por cidade e com a simplicidade e beleza de um dia após o outro. É queijo fresco com o café que acaba de ficar pronto, doce de leite, cachaça, tropeiro e angu com couve. Minas são as gretas que um dia estiveram extremamente ativas, é ouro, riqueza, coroa, revolução, pobreza, barro, repressão, história, barroco, música e tradição. Minas é terra de Milton Nascimento, Guimarães Rosa, Édson Arantes do Nascimento, Carlos Drummond de Andrade, Aleijadinho, Adélia Prado, Carolina de Jesus, Darcy Ribeiro, e até da orquestra mais antiga das Américas em atividade ininterrupta, a Ribeiro Bastos. E agora, mais do que nunca, Minas é terra de Duo Aduar e Estêvão Lobo.
Octávio Deluchi
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