Durante o percurso humano, sempre tivemos uma tendência a classificar como “divino”, “supernatural”, ou “sagrado” algo que não entendemos completamente. Tudo aquilo que não conseguimos processar o funcionamento de forma satisfatória, em nossa compreensão, vira um milagre. Historicamente, a chamada luta da ciência contra a religião – erroneamente chamada de luta – foi pautada no fato de que a primeira, trazia explicações para o que antes era considerado sagrado, sobrenatural, milagroso ou dogmático. Mesmo assim, milênios de ciência não desvendarão os mistérios religiosos, porque estes também estarão em mudança.
Não importa a quantidade de desafios ou facilidades: o ser humano como conhecemos sempre estará em busca de algo a mais. Tenho uma colega que diz que os Estados Unidos lhe agrada pois aqui se tem que batalhar firme pelos desejos, e ao fazer, a recompensa chega. Para mim, mesmo se tivéssemos todo o dinheiro, conforto e falta do que consideramos hoje desafios, ainda sim estaríamos em busca de algo a mais, que faria com que ficássemos inquietos e curiosos.
Uma das palavras que remete ao inexplicável ou ao sagrado é “talento”. É sempre confortante para nosso ego quando somos chamados de talentos ou talentosos, certo? Ou quando, na falta de uma palavra melhor, chamamos ou atribuímos o valor de talento para outra pessoa, com quem ficamos impressionados ou admirados.
Religiosamente, sendo cultura e socialmente aceita, acredito na palavra. Tenho fé nela. Como musicista, licenciado e tendo estudado relações de aprendizado, ensino, psicológicas e sociais, acho uma completa mentira. Repito: talento é mentira, é religião. Uma palavra usada para explicar o que o emissor não entende.
Somos moldados pelo meio em que vivemos, desde o momento de nosso concebimento. Temos colegas na música e psicologia que fazem muitos trabalhos e pesquisas com bebês ainda no útero, por exemplo. Cada ser humano é único, e além dos fatores genéticos e sociais, um ponto importante e que ainda não temos tantos detalhes é o funcionamento de nossa mente. Apesar de existirem muitas pesquisas, ainda não temos a mesma destreza e informação como temos de órgãos como a pele por exemplo. Responsável por tudo em nossa vida, o cérebro é parte fundamental disso.
O ser humano é um animal maravilhoso, pois apesar de toda a liberdade e capacidade de raciocínio, também somos tão previsíveis quanto máquinas. Tudo está dentro do condicionamento e mapeamento em que estamos inseridos. Com isso, muitos talentos milagrosos são explicáveis. Nada mais simples – mas não menos laborioso e merecedor – que a vivência e exposição desde cedo à um determinado tipo de linguagem, seja ela musical ou não.
Em relação aos talentos inacreditáveis, devemos também considerar que cada indivíduo possui desejos, formas de raciocínio, resolução de problemas e processos de assimilação próprios. E por conta de todas essas variáveis, é quase impossível de mensurar hoje, a importância e influência que uma mínima exposição pode causar.
Sem exceções, mínimos detalhes de tudo que vivenciamos desde a barriga de nossas mães, estão armazenados em nosso HD. Entretanto, essa quantidade gigantesca de informação em sua maior parte está codificada de forma que hoje não temos acesso, em nosso inconsciente. Por esse motivo é difícil mensurar a importância ou não de determinada vivência.
Jung dizia em seu livro O Homem e Seus Símbolos: “Há, ainda, certos acontecimentos de que não tomamos consciência. (…) Aconteceram, mas foram absorvidos subliminarmente, sem nosso conhecimento consciente. Só podemos percebê-los nalgum momento de intuição ou por um processo de intensa reflexão que nos leve à subsequente realização de que devem ter acontecido. E apesar de termos ignorado originalmente a sua importância emocional e vital, mais tarde brotam do inconsciente como uma espécie de segundo pensamento.” (p. 23)
Para algumas pessoas, são necessários anos de aulas com determinado professor para entender o funcionamento de algo. Para outras, uma aula, um mês, ou dez encontros bastam para terem o insight, – eureca!! – e passarem a adotar o que foi absorvido. Não há nada de anormal ou demais nisso, mas sim apenas como funcionamos.
Novamente Jung: “Dentro da mente estes fenômenos tornam-se acontecimentos psíquicos cuja natureza extrema nos é desconhecida (pois a psique não pode conhecer sua própria substância). Assim, toda experiência contém um número indefinido de fatores desconhecidos, sem considerar o fato de que toda realidade concreta sempre tem alguns aspectos que ignoramos desde que não conhecemos a natureza extremada matéria em si.” (p. 23)
Como não conseguimos mensurar cada experiência de todos os mais de 7 bilhões de humanos na terra, simplificamos com a palavra “talento”. Pode ser que para um indivíduo cuja familia, meio social, amigos e sociedade ao redor não estejam expostas à música clássica, um episódio do Pica-Pau seja suficiente como gatilho de interesse. Ao passo que para outras, uma vida inteira exposta talvez não seja suficiente para tal.
O fato de chamar alguém de talentoso pode por si só fazer com que o indivíduo se sinta mais especial, e então trabalhar e estudar de forma mais veemente, alcançando melhores resultados. Confirmando com isso, que desde cedo determinada pessoa era talentosa. Ou exatamente o contrário: não se esforçando tanto, pois erroneamente o indivíduo já se sente agraciado. No segundo exemplo, a pessoa deixaria de ser talentosa pelo simples fato de chamarmos a mesma de talentosa, uma vez que se conformou e os desafios não foram acima de suas capacidades, na medida correta.
Ainda sim, essa maior ou menor aptidão na solução dos problemas não ocorre em um âmbito geral da vida. Isso faz com que tenhamos essa sociedade tão diversa, onde cada um possui diferentes predileções. Essa facilidade ou não estará associada diretamente aos primeiros anos de vida que tivemos: vivências, experiências, desafios e problemas enquanto bebês, crianças de colo e jovens.
Não possuo a pretensão aqui de explicar cientificamente, psicologicamente ou socialmente o que é a concepção da palavra, até porque não possuo formação em nenhuma das áreas. Entretanto é importante usar o espaço para compartilhar um pouco do que penso sobre, sendo um termo extremamente recorrente. Como educador, meu dever é promover e trabalhar para uma liberdade do pensamento, evolução e crescimento pessoal. O contrário disso é usar exemplos de talentos ou não-talentos para pautar, elevar ou diminuir a média de conhecimento no qual gostaria de me cercear.
É importante lembrar que talento não é vocação, inteligência, capacidade ou desenvolvimento, é talento. O tema me foi muito pertinente quando um professor por quem tenho muita consideração disse algo muito parecido com a seguinte frase: “O maior perigo da pessoa talentosa é não ser chamado(a) ou reconhecido(a) como competente.” Além de causar estigmas para aqueles que desde cedo possuem o rótulo, o talento é algo futuro, que pode ou não vir a ocorrer. Já o adjetivo competente, se refere ao presente. É quem hoje possui essas capacidades de articulação.
Termino o presente texto com mais uma frase de Jung, presente no que acho um dos livros mais interessantes e importantes do século passado, e já aqui citado: O Homem e seus Símbolos (p. 21): “Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente.”
Após, o autor ainda completa: “O homem, como podemos perceber ao refletirmos um instante, nunca percebe plenamente uma coisa ou a entende por completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distância pode ver, quão acuradamente consegue ouvir, o quanto lhe significa aquilo em que toca e o que prova, tudo isto depende do número e da capacidade dos seus sentidos. Os sentidos do homem limitam a percepção que este tem do mundo à sua volta.”
Octávio Deluchi
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