O cenário musical passou por revoluções significativas ao longo do tempo, especialmente nas últimas décadas. Entretanto, nem todas as mudanças levam a bons caminhos para uma experiência musical. Com tal atmosfera, é verdade que o .mp3 foi possivelmente a maior revolução na indústria fonográfica em décadas. Ainda que pareça um passado distante, o século XXI deve muito ao desenvolvimento de tal formato. Talvez por estar mais perto de tal ponto que em comparação a outros como o CD, fita cassete, rolo, ou áudio digital, ou talvez não apenas por isso, acredito que o .mp3 tenha sido o ponto fundamental que mudou os rumos da experiência, fruição e hierarquia socio-musical nos últimos 70 anos ou mais.
Tal formato foi a abertura também de um mercado e forma de consumo que como Brasileiros estamos (erroneamente) acostumados, mas não temos muita ideia do alcance a um patamar maior: a pirataria. Desde muito tempo é sabido que os músicos, artistas e intérpretes possuem na apresentação ao vivo, show ou concertos, a sua maior fonte de renda. É um assunto que merece (e seria ótimo) ser mais discutido, mas deixarei para outra oportunidade. Essa característica foi uma das mais marcantes para que a pandemia tenha sido tão prejudicial à classe. São pouquíssimos os casos, onde um artista realmente teve um excelente retorno, ou como principal atividade no que se refere á produção fonográfica. Vale lembrar que fama e sucesso se difere de retorno financeiro. Músico depende de gente, nas diversas acepções do termo, depende de público, em um significado mais holístico ou ainda pragmático.
No mercado musical, a parte esmagadora dos valores se perde nas gravadoras, selos, produtoras, entre outras. O .mp3 foi revolucionário pois foi onde houve uma massiva alteração na relação artista-gravadora-público. A possibilidade da quebra do código e cópia ilimitada do material digital contido foi um fator que literalmente quebrou o cenário. Apesar de novo, consigo lembrar no Brasil de grandes bancas de CD`s pirateados, aos milhares, em todas as esquinas de qualquer cidade. Inevitavelmente isso atinge os artistas, mas acima de tudo, as gravadoras.
Para dar nome aos bois, falo aqui de empresas como Warner, Sony, Universal, entre outras. Para mais informações, recentemente tivemos uma reportagem onde as três possuem quase 2/3 do mercado. O outro lado da moeda é a acessibilidade quase ilimitada a qualquer artista, a qualquer momento, vindos dos mais diversos lugares. Quanto mais uma música é veiculada, maior a chance de se apresentá-la ao vivo, e maior ser o público alcançado por tal artista.
Com essa possiblidade de quebra, recorte, e divulgação ilimitada de música, foi possível também a criação das famosas playlists. Claro, já existiam antes, mas não com o mesmo papel e relevância. Hoje, temos uma quantidade incontável das mesmas, com artistas ainda mais diversificados. Indo dos que estão há anos no mainstream, até ao lado dos que acabaram de chegar. Cada playlist criada é o nascimento de um Frankenstein musical.
O único sentido justificável que vejo, ocorre no âmbito didático, com a finalidade da comparação de estilos, gêneros, desenvolvimentos, e formas de trabalho do material. Nada mais que isso. Economicamente falando, é um grande sistema que leva e traz hits, onde muito poder aquisitivo tem que ser colocado na mesa para o novo estouro ser ou não lançado. Tristemente, virou condição de sucesso, em uma sociedade onde muitos dos artistas não lançam mais CD`s, mas sim, singles. São feitos especialmente para alguma playlist, e serem escolhidos como a sua escolha de estilo e gênero. Apesar de tudo isso, o pior ponto ainda é o assassinato do discurso estético-musical do artista.
Veja que não falo de gêneros musicais específicos aqui, mas de uma tendência de escuta moderna, guiada por questões comerciais, econômicas e da necessidade instantânea da conectividade. Levando as experiências mutiladoras de uma playlist para outras áreas , vejo como similar recortar uma página de 20, 30 romances diferentes, e colocá-las todas no mesmo álbum, sob o rótulo de “melhores momentos” da literatura mundial, ou sob determinado recorte.
Como dito anteriormente, pode fazer algum sentido em um âmbito didático, e ainda sim não acreditaria nesse exemplo. Como experiencia artística, comunicativa e estética, nenhum. Para uma experiencia literária com sentido, continuidade e razão, não lemos uma pagina de Proust, fechamos, abrimos um livro de Woolf, lemos um excerto, pulamos para Galeano, seguido de Marquez, Rosa, Nietzsche, e por ai vai. É fisicamente despendioso, mentalmente desgastante.
Ao cozinhar, não se mistura salmão com feijoada, vinagrete, panquecas, pasta, banana, ovo e pão no mesmo prato. Em um espetáculo de dança, não existe a minima possibilidade de “pular” o acontecimento para seguir para o proximo ponto culminante da obra seguinte. O mesmo para óperas, concertos e artes performáticas. A pergunta é: Fazemos exatamente a mesma coisa com música, por quê?
A facilidade de acesso e manipulação que o .mp3 trouxe foi apropriada de forma magistral pelo capitalismo, assim como qualquer outro movimento, criação ou perspectiva que inicialmente tenha oferecido uma ameaça, ainda que minima, aos valores vigentes. Com isso, temos uma máquina econômica que aliena os ouvidos alheios.
Não é coincidencia que o mercado de vinis tem crescido. Por uma suposta qualidade sonora? Não. Mesmo com ávidos saudosistas, novas tecnologias são comprovadamente mais eficazes, e com detalhes maiores. O grande fator com o vinil, ao meu ver, é a experiência musical acessada.
Tal campo tem crescido em outros âmbitos. Essa tendência das coisas fáceis e rápidas que se apresenta através das playlists no meio musical pode ser vista em outras áreas. Atividades simples e que deveriam ser comum aos humanos, como passeios em parques, natureza, frutas naturais, comida feita, são todos vistos como algo distante, “gourmet” ou até inacessível a muitos, devido à transformação da sociedade com foco no tempo = dinheiro, com a necessidade da onipresença e onisciência através do trabalho. Sabemos muito de nada, ou nada de muito? Talvez saibamos, mas não simpatizamos, compreendemos ou contemplamos.
Voltando ao vinil, o ritual da escuta envolve muita coisa. Começa com a compra do disco, com um lindo encarte, e a dura decisão da escolha de um único afortunado, entre as centenas disponíveis na loja ou sebo. Em sua maior parte, encartes com obras de arte muito bem trabalhadas. A chegada em casa com a expectativa de como a agulha vai tocar e se relacionar com aquele determinado disco, é fundamental. Por sua vez, o disco que foi esculpido especificamente com ondas que de sonoras, passaram a ser materiais, entalhadas em tal peça; a abertura do rótulo, feita cuidadosamente, para que não haja quebras, riscos ou danos; preparação do equipamento de som, que varia: sobe a tampa, clica aqui, ali, posiciona a agulha. Enfim, o disco é posicionado, e a parte mais importante e prazerosa chega: colocar a agulha no inicio do disco, com muito cuidado. Apos os primeiros ruídos, com a supresa da expectativa, a música começa, de forma mágica. Por que surpresa? Sabemos o que vai acontecer, mas não sabemos com precisão a quantidade de espaço-tempo teremos do tocar da agulha às emissões das primeiras ondas, convertidas novamente em formato sonoro. Com isso, o ritual se iniciou e a tendencia da escuta atenta e completa do disco é maior.
Também importante de mencionar, o vinil possui data de validade, por ser uma mídia física que se desgasta ao longo do tempo. Isso proporciona um valor inerente ao mesmo, e cria a necessidade de maior zelo, cuidado e atenção. É impensável colocar um disco, ouvir uma música, tirar, colocar outro disco, procurar outra, trocar para o terceiro álbum, quarto, e assim por diante.
Essa descrição toda apenas sob a perspectiva do ouvinte. Através da perspectiva do artista, o mesmo planeja e cria uma concepção estético-comunicativa, pensada como um todo e dividida e apresentada ao longo de todo o album. Se considerarmos esse fator, que é determinante, torna a experiência ainda mais sofrível. Uma determinada música faz mais sentido se contextualizada com o que vem antes, depois, e no grande arco planejado para o registro artístico.
Com a salada não tão tragável da playlist, uma sensação de prazeroso vazio toma conta. O primeiro sentimento por determinadas melodias que a mente esperava pela resolução. Vazio pois após um curto espaço de tempo, o sentimento de insatisfação vem, uma vez que não existe nenhum discurso ou comunicação acontecendo, pela falta de unidade, organização e conexão. O que acontece então é o salto manual, do que era pra ser automático de música em música, playlist em playlist, quando na verdade esses são apenas os sintomas. O problema é anterior. A necessidade cosmopolita de se ouvir tudo nos traz a qualidade de não termos ouvido nada.
Octavio Deluchi
Prados Online
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