O grande filósofo alemão Martin Heidegger, em seu clássico livro O Ser e Tempo afirma que o homem é um ser lançado no tempo. O tempo atravessa e perpassa a nossa existência humana. De certo modo, o tempo define nosso existir. O tempo é uma convenção humana. Baseados no movimento dos astros é que definimos o tempo, mensuramos o dia, à noite, o ano, escrevemos a história. A tradição bíblica também se ocupou do tema do tempo, o livro do Eclesiastes assevera que “há um tempo para tudo, de nascer, de morrer, de plantar, de colher”. Ecl 3, 1 O grego bíblico conhece muitas palavras para designar tempo, destaco duas: chronos e kairós. O primeiro termo denota a expansão quantitativa e linear do tempo. É o tempo do relógio, é o tempo cronológico. Implacável, ele rouba nossos dias, nossas forças, nos envelhece. O tempo do kairós é aquele tempo denso, qualitativo e significativo. É o tempo de Deus, pois “mil anos para Deus pode parecer um dia e um dia mil anos”. A nossa memória, que é seletiva, tende há armazenar o tempo kairológico, ou seja, somente aqueles momentos que tocam profundamente nossa existência. Por exemplo, a perda de um ente querido, um reencontro, o gosto de uma conquista.
A liturgia da Igreja também se situa no intervalo do tempo. Ela abarca essas duas dimensões do tempo. Está situada no tempo chronos, mas manifesta o kairós na medida em que aponta para o mistério. A liturgia é temporal e marca o ritmo da vida humana como as pausas na pauta musical. O homem, a natureza e a liturgia vivem de ciclos. A vida também possui uma estrutura litúrgica: ela é composta de ritos. Ritos de iniciação, como o batismo que insere o novo ser na comunidade humana, os ritos de puberdade ou de passagem que introduzem o jovem na fase da maturidade, os ritos de despedida que nos ajudam a lidar com a perda e com a morte. Assim, a graça de Deus que supõe a natureza, se manifesta nesses momentos relevantes da vida do homem. Não é por acaso que alguns sacramentos da Igreja são administrados justamente nessas fases.
O tempo da graça ou o kairós é aquele tempo no qual você é tocado. Como o profeta Elias que foi arrebatado ao céu numa carruagem de fogo, o tempo de Deus, o kairós, nos arranca da nossa mesmice, do nosso cotidiano enfadonho e nos lança no oceano do mistério. Os sacramentos e a liturgia da Igreja têm a finalidade de nos conduzir ao mistério. São realidades mistagógicas. Também um por do sol, uma reminiscência de infância, uma flor ao desabrochar podem nos arrancar do nosso topos comum, da nossa “existência inautêntica” e nos levar a uma existência autêntica. Pensemos na metáfora de um poço do qual tiramos água para saciar a nossa sede. Temos duas opções: ou ficamos a vida toda apanhando água na superfície e água cristalina, ou então, mexemos no fundo do poço e reviramos as águas e, consequentemente, apanharemos águas turvas. Apanhar somente água límpida pode ser prazeroso, mas será benéfico? Sem entrar em contato com nossos dramas, sem deixar que as águas de nossa vida, por vezes, se tornem insalubres e barrentas, não enfrentaremos as questões mais profundas de nossa existência. Pode parecer contraditório, mas a graça de Deus também pode se manifestar na “desgraça”, naquelas situações em que nos confrontamos com nossas debilidades humanas. O sofrimento e a dor podem nos proporcionar uma existência autêntica. É nesse sentido que é possível interpretar o Eclesiastes “mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa (…) mais vale o desgosto que o riso” Ecl 7, 2-3 O sofrimento nos coloca diante do real, nos transporta da superfície para a profundidade do poço. Espero que nossas liturgias e o êxtase diante da criação nos conduzam à contemplação e não as dores e sofrimentos. Que nos levem a experimentar esse tempo, kairós, que tem um gosto de eternidade!
Pe. Dirceu de Oliveira Medeiros
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