Durante as atuais semanas de tempos reclusos, tenho feito com que a literatura se aproxime novamente de minha rotina.
Ao voltar para os Estados Unidos, em janeiro, trouxe comigo dois títulos: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (Companhia das Letras) e Os Sertões, de Euclides da Cunha (Martin Claret).
O fato é que já demandam muito espaço da capacidade imaginativa, o que é ótimo. Estou no processo de leitura do autor mineiro: Guimarães Rosa.
Para apreciar o caminho evolutivo da obra, quero aqui deixar registrado um pouco de sua beleza. Marquei algumas frases onde a graciosidade se cristaliza em símbolos impressos, posteriormente codificados pelo leitor. Como diria Riobaldo: “Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.”
Compartilho aqui um diário de bordo de minha leitura. Espero que possa servir como um atrativo convite para o livro.
Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte.
Viver é negócio muito perigoso…
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.
Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.
Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há neste mundo, é porque se merece e carece.
Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente… Eu, já estou velho.
O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.
Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração.
Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.
Toda saudade é uma espécie de velhice.
O amor, já de si, é algum arrependimento.
Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia: ou cara de ruindade!
Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de ninguém: só gostava de mim, de mim!
Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato…
“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho…”
Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
No formato da forma, eu não era o valente nem o mencionado medroso. Eu era um homem restante trivial.
Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito.
O sertão é do tamanho do mundo.
Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade!
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa.
eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.
Assumí, em trela, tristeza e alívio – aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais.
sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce e porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdio, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.
Comigo, as coisas não tem hoje e ant’ôntem amanhã: é sempre.
A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor
Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência.
Amigos, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado.
Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.
A noite é uma grande demora.
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!
Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.
Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é.
Sendo que a sorte também prevalecia do nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?
Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava.
Excertos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Octavio Ferreira
Prados Online
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